sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Contos do Amor I



Certa vez um homem cansado de ver tanta maldade na região onde vivia, decidiu fazer uma peregrinação ao santuário do Deus de sua crença para pedir-lhe que mudasse aquela situação.
Ao entardecer, já cansado de tanto caminhar, parou debaixo de uma árvore e ali ajeitou o local para passar a noite.
Quando já estava pronto para dormir, ouviu uma voz, vindo do nada que lhe dizia:
- Homem, como te chamas?
Ele, muito assustado, automaticamente respondeu:
- Eu me chamo Amor.
- De onde tu vens?
E Amor, muito triste, respondeu-lhe:
- Venho de uma terra desolada, onde só existe maldade. A paz e a esperança a muito findou.
- Para onde estás indo com toda essa tristeza?
- Vou para o santuário do Deus dos meus ancestrais, para pedir-lhe que interceda na minha região, fazendo com que o bem volte a reinar.
A voz cessou por um instante e depois voltou a dizer:
- Não precisas ir tão longe para falar com o teu Deus. Eu sou Aquele que procuras. Mas só posso conceder-lhe o desejo se pedires com muita fé.
E Amor, pensou, entrou em oração e decidiu fazer o pedido:
- Quero que me transformes em uma pedra e me coloques na boca daquele vulcão.
E O Deus, já revelado, confuso, disse:
- Pensei que fosses pedir-me para restabelecer o bem na tua região. Por que me pedes isso?
- Eu fiz como me disseste. Pedi com fé. Então cumpra a sua promessa.
E assim foi feito. O Deus o transformou em uma pedra e o colocou na boca do vulcão.
Logo, o vulcão entrou em erupção e, na primeira explosão, espatifou Amor em milhões de pedaços que se espalharam por toda a terra.
Assim, em todos os lugares, passou a existir um pedaço de Amor e a terra voltou a ter esperança.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

A Vida como Ela É...



Todas as nossas historias são reais.....

Eu invejo a burrice, porque e eterna - Nelson Rodrigues


Karla, petropolitana, 39 anos, casada ha 13 anos com Ricardo um empresario bem sucedido no ramo de combustível, dedica seu tempo para cuidar dos filhos e da sua aparência, na esperança de manter seu casamento para o resto da vida.


Karla acredita que e referencia de beleza e, por isso, vive a dar conselhos as amigas, dos tipos que chique e a mulher que tem pele clara ou mulher que pesa 50 kg, mesmo que tenha 1.90m de altura e não seja modelo ou mulher que não come doce em hipótese alguma na vida, pois senão poderá perder seu homem para qualquer magrinha que frequenta as orlas cariocas.


Qualquer indivíduo é mais importante do que a Via Láctea - Nelson Rodrigues

A rotina de Karla se resume em correr na Lagoa Rodrigo de Freitas e em comer e falar abobrinhas com as amigas. Uma vez por semana ela se encontra com as amigas para os chá das cinco. Nos encontros, elas se limitam a debater sobre as calorias do chuchu, da acelga e da rúcula Debatem se a coca-cola zero engorda mesmo, mas de qualquer forma preferem não arriscar a ingerir um liquido que tem cor engordativa, também debatem sobre outras coisas importantes do tipo quem perdeu mais calorias na aula de running do professor Rodrigao e por ai vai. Os temas são os mais variados possíveis, dependendo do que ocorreu na agenda das amigas, mas sempre dando maior importância para o assunto queima e ingestão de calorias durante a semana.


Outro dia, em seu posto de gasolina, Karla conheceu Felícia, vaidosa, elegante, descontraída e um pouco acima do peso, mas feliz, como reza seu nome. Filha de fazendeiros, criada em uma pequena cidade no interior do Rio de Janeiro. Felícia dedicara a sua vida a veterinária e acabara de abrir seu consultório perto do posto de gasolina de Karla. Em poucos minutos de conversa, a pobre menina foi ateada na caldeira de vapor de Karla, só pelo fato de estar gorda, para os seus parâmetros, claro. Karla não quis saber da experiencia de vida da moca e se restringiu apenas a um tema - a gordura localizada de Felícia Felícia foi aconselhada por Karla a não comer em hipótese alguma, quer dizer, poderia esta comer apenas frutas e legumes no almoço, nada de carne, nem branca. Alem disso, Karla comentou com a moçoila, que se recusava a jantar fora com o marido Ricardo e, que ha mais de 10 anos não comiam uma pizza juntos. Orgulhosa, Karla falou de boca cheia (quer dizer vazia) que na noite anterior tinha ido a um casamento na sua cidade e que ela era a mais bonita de todas as mulheres da festa, enfatizando, que deu um banho nas meninas obesas de 17 anos. Voltando-se a Felícia, Karla lembrou-se de mais um conselho importante: De nunca se entregar ao prazer da gula. Sugeriu a Felícia a não frequentar festas de aniversários, a não beber refrigerantes, nem comer bolo ou cachorro quente, nem tão-pouco experimentar doce, nem que fosse um bem-casado, pois cinco minutos de chocolate na boca são cinco anos de malhação para tira-lo da bunda.


Só o cinismo redime um casamento.

É preciso muito cinismo para que um casal chegue às bodas de prata - Nelson Rodrigues


Karla mandou Felícia correr como se fosse uma gazela feliz no parque, tipo Forrest Gump e, finalmente o ultimo conselho veio como um golpe de enxada nos seios de silicone da vitima: Karla olhou bem dentro dos olhos de Felícia e foi bem clara ao manda-la abrir os olhos, pois naquelas circunstancias, com as banhas sobrando pela lateral da calca jeans, logo a gorducha ficaria infeliz, pois estava prestes a perder o noivo.


Só o inimigo não trai nunca - Nelson Rodrigues


Inundada de tristes emoções, chorando sentada no meio fio e com a auto-estima dentro do bueiro do seu lado direito, Felícia quis dar uma reviravolta na sua vida e, então, emagreceu e emagreceu. Acentuou as curvas do seu corpo bem feito, permanecendo com suas pernas roliças e cintura fina, tornando-se assim a desinibida do bairro. Ficou fininha, porem saudável, esbanjando alegria e comendo de tudo um pouco, como frutas, legumes, carnes e não se privou do seu maior prazer, o chocolate. Ela continuou feliz tao feliz, que Ricardo, marido de Karla se aproximou de Felícia Sempre enviava flores e cartas românticas para a moca. Felícia seguiu direitinho os conselhos de Karla, só que com uma dose de felicidade, tanto que Ricardo se apaixonou por ela.

As grandes convivências estão a um milímetro do tédio - Nelson Rodrigues


quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Flores de Gelo

Nas noites que se forem, oh, meu anjo
cantarei o bálsamo do nosso amor...
Ah, o nosso amor...
Não partiu rumo à aurora que clareia este belo vale,
ele está aqui repousando,
neste coração, onde resta suas cinzas e minha esperança.

Não vejo mais minha imagem através dos seus olhos
o que vejo agora em mim?
Um espectro,
furando com asas de sangue os meus pensamentos
que são somente seus.
Seus e somente...

E agora?
Pálida estrela vespertina,
mais uma noite se finda,
na saudade mais uma lembrança tardia.
Essa triste canção, nos teus lábios, não se canta...
Nas noites que se forem...



Escrito por ☧ Douglas

quinta-feira, 24 de março de 2011

por Lygia Fagundes Telles


VENHA VER O PÔR-DO-SOL


Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde.


Ele a esperava, encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinha um jeito jovial de estudante.

- Minha querida Raquel.

Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos.

- Veja que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. Que idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do táxi lá longe, jamais ele chegaria aqui em cima.

Ele riu entre malicioso e ingênuo.

- Jamais? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância! Quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete léguas, lembra?

Foi para me dizer isso que você me fez subir até aqui? – perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. - Hein?!

Ah, Raquel... - e ele tomou-a pelo braço. Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado...

Juro que eu tinha que ver ainda uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então? Fiz mal?

Podia ter escolhido um outro lugar, não? -Abrandara a voz. - E que é isso aí? Um cemitério?

Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem.

- Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos, desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha como as criancinhas brincam sem medo acrescentou apontando as crianças na sua ciranda.

Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do companheiro.

- Ricardo e suas idéias. E agora? Qual o programa?

Brandamente ele a tomou pela cintura.

- Conheço bem tudo isso, minha gente está, enterrada aí. Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr-do-sol mais lindo do mundo.

Ela encarou-o um instante. Envergou a cabeça para trás numa risada.

- Ver o pôr-do-sol!... Ali, meu Deus... Fabuloso, fabuloso!... Me implora um último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr-do-sol num cemitério...

Ele riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado em falta.

- Raquel, minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que vive espiando pelo buraco da fechadura...

- E você acha que eu iria?

- Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima.

Então pensei, se pudéssemos conversar um pouco numa rua afastada... - disse ele, aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram-se formando em redor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento. - Você fez bem em vir.

- Quer dizer que o programa... E não podíamos tomar alguma coisa num bar?

- Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.

- Mas eu pago.

- Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente, não pode haver um passeio mais decente, não concorda comigo? Até romântico.

Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.

- Foi um risco enorme, Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero só ver se alguma das suas fabulosas idéias vai me consertar a vida.

- Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja, completamente abandonado – prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos gonzos gemeram. - Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui.

- É um risco enorme, já disse. Não insista nessas brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não suporto enterros.

Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo.

O mato rasteiro dominava tudo. E não satisfeito de ter-se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrara-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira as alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. As vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos, medalhões de retratos esmaltados.

- É imenso, hein? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, que deprimente - exclamou ela, atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada. - Vamos embora, Ricardo, chega.

- Ali, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê?

Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da noite, está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambigüidade. Estou-lhe dando um crepúsculo numa bandeja, e você se queixa.

- Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre.

Delicadamente ele beijou-lhe a mão.

- Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.

- É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais.

- Ele é tão rico assim?

- Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o

Oriente. ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro...

Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.

- Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?

Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo.

- Sabe, Ricardo, acho que você é mesmo meio tantã... Mas apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele! Quando penso, não entendo como agüentei tanto, imagine, um ano!

- É que você tinha lido A Dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora?

- Nenhum - respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve-se para ler a inscrição de uma laje despedaçada: minha querida esposa, eternas saudades - leu em voz baixa. - Pois sim. Durou pouco essa eternidade.

Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.

- Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja - disse apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda -, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas... Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso.

Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.

- Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim. - Deu-lhe um rápido beijo na face.

-Chega, Ricardo, quero ir embora.

- Mais alguns passos...

- Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! -

Olhou para trás. - Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta.

- A boa vida te deixou preguiçosa? Que feio - lamentou ele, impelindo-a para frente. - Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de que se vê o pôr-do-sol. Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima.

Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai.

Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas.

- Sua prima também?

Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos... Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas... Penso agora que toda a beleza ela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus.

Vocês se amaram?

Ela me amou. Foi a única criatura que... Fez um gesto. - Enfim, não tem importância.

Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o.

- Eu gostei de você, Ricardo.

-E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?

Um - pássaro rompeu cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu.

- Esfriou, não? Vamos embora.

- Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.

Pararam diante de uma capelinha coberta: de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par.

A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo.

Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombros do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba.

Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da capelinha.

Que triste que é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?

Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu, melancólico.

- Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo? Mas já disse que o que mais amo neste cemitério é precisamente este abandono, esta solidão.

As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta.

Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na semiobscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento.

- E lá embaixo?

- Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó - murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada.

Aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la. - A cômoda de pedra. Não é grandiosa?

Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor.

- Todas essas gavetas estão cheias?

- Cheias?... Só as que têm o retrato e a inscrição, está vendo?

Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe - prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado embutido no centro da gaveta.

Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz.

- Vamos, Ricardo, vamos.

- Você está com medo.

- Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio!

Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado.

- A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato, duas semanas antes de morrer... Prendeu os cabelos com uma fita azul e veio se exibir, estou bonita? Estou bonita?... -

Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente. - Não é que fosse bonita, mas os olhos... Venha ver, Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos seus.

Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada.

- Que frio faz aqui. E que escuro, não estou enxergando!

Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira.

- Pegue, para ver muito bem... - Afastou-se para o lado. -

Repare nos olhos.

Mas está tão desbotado, mal se vê que é uma moça... - Antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente. - Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil e oitocentos e falecida... - Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel. - Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos! Seu menti...

Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor.

A peça estava deserta. Voltou o olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada. Tinha seu sorriso – meio inocente, meio malicioso.

- Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso!

Brincadeira mais cretina! - exclamou ela, subindo rapidamente a escada. - Não tem graça nenhuma, ouviu?

Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás.

Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! - ordenou, torcendo o trinco. - Detesto este tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no que seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida!

- Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta tem uma frincha na porta. Depois vai se afastando, devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr-do-sol mais belo do mundo.

Ela sacudia a portinhola.

- Ricardo, chega, disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente! - Sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso. - Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra...

Ele não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em leque.

Boa noite, Raquel.

Chega, Ricardo! Você vai me pagar!... - gritou ela, estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá-lo. - Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos! - exigiu, examinando a fechadura nova em folha. -Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando. -Não, não...

Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. Foi puxando, as duas folhas escancaradas.

- Boa noite, meu anjo.

Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se, entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida.

- Não...

Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido.: No breve silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o grito medonho, inumano:

- NÃO!

Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de, um animal sendo, estraçalhado.

Depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento.

Nenhum ouvido humano escutaria agora, qualquer chamado. –Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda.

LFT

sexta-feira, 4 de março de 2011

Juntas para sempre




Cândida e Lourdes eram gêmeas idênticas e muito próximas.
Quando criança confundiam seus pais: ninguém nunca sabia quem era quem quando resolviam trocar de identidade. Quando doentes elas mesmas cuidavam uma da outra.
Sempre juntas, sempre unidas.

Quando cresceram logo arrumaram namorados, pois eram lindas e inteligentes. Loudes se casou e foi embora para Teresina; Cândida continouo em Bacabau, mas sempre uma ia visitar a outra. Depois de dois meses longe da irmã, Candida começou a ficar quieta, passava horas a comtemplar o vazio e logo em seguida deixou de comer, ao fim de uma semana ela passou a apresentar febre e convulsões.
Sua mãe sabia que o único remédio era a presença da irmã, mas como naquela época a única forma de se comunicar era por telegrama, mandou um solicitando a presença de Lourdes urgentemente, contudo o telegrama atrasou-se e Cândida acabou falecendo em meio a delírios; chamando pela amada irmã.

Passados dois anos da morte de Cândida, Lourdes muda-se novamente para sua cidade natal Bacabal. É quando começa a enfrentar problemas com o marido.
Pois, com mais de dois anos de casamento, ela não conseguira engravidar e por causa disso o seu marido começou a traí-la.
Uma vez ela reclamou dele ter demorado na rua, ele bateu tanto nela e com tanta brutalidade, que ela ficou de cama.
Com o passar do tempo, ele não dava mais nada a ela. E a maltratava cada vez mais. Lourdes não contava com ninguém: sua mãe achava que ela estava errada e era sua culpa pois não conseguia dar filhos ao marido.
Então ela começou a se amaldiçoar e chamar pela companhia da irmã.

Ela estava sentada de costas para a janela quando ouviu seu nome ser chamado pela voz da irmã. Lourdes sentiu o corpo gelando com um frio percorrer sua espinha; mas ao virar nada vira.
Entrou no quarto e trancou-se, agarrada em um crucifixo, orou um "pai nosso" bem baixinho.
Dormindo, sonhou com um lugar da sua infancia na beira de um rio, sentada ao lado de sua irmã Cândida; que lhe abraçava forte e dizia que não entendia porque ela a havia abandonado, mas que não importava mais, pois ela havia encontrado um jeito de elas ficarem juntas para sempre.
Lourdes acordou assustada e assutou-se ainda mais com fortes batidas porta.
Seu marido arromba a porta com raiva e a soca no rosto, Lourdes cái ao chão, onde adormece...


*
revisado por Frank J. Kosta

sábado, 8 de janeiro de 2011

*Nada de Mais*


Esta história não tem nada de novo, sequer de original.
É, apenas, mais uma história como tantas outras por aí...

A história de um alguém carente, que já sofreu muito, mas continua seguindo em frente.
Simplesmente porque a idéia de parar o assusta muito mais que a possibilidade de sofrer!


Então permite/obriga-se a sobrepor-se ao próprio medo e acreditar numa nova chance.

Esse alguém – coitado – namorou com uma pessa que se matou; e seguiu em frente, foi traído, enganado, abandonado; mas seguiu enfrente.

Foi correspondido quando amou; assim como também não o foi!!!!

É um alguém amargo e razinza, mas reconhece o prazer que um abraço ou um beijo pode proporcionar... e o deseja!
Esse cara, mesmo carente, busca ser feliz com as cartas que tem em mãos.
Gosta de coisas simples, e tenta ser simples e honesto o máximo possível!

Sim! Ele é desconfiado, mas aprendeu a ser assim depois de tanto sofrer; sofrer por confiar sem reservas.
Ele sabe que os problemas existem e nem tenta negá-los; porém procura se preocupar e resolvê-los um de cada vez (à medida que surgem...). Não tem medo dos problemas ou da solidão; tem medo da mentira!!

Ele tenta não pedir coisa alguma coisa que ele próprio não seja capaz de fazer. Então ele tenta fazer tudo o que pode.

Esta não é uma história triste, tampouco é uma história alegre. Ela é agridoce. Como a vida de qualquer um...

Ele não espera dedicação total, nem fidelidade cega e absoluta.
E nem as pede!
Apenas espera Honestidade, por ele próprio tentar ser sempre honesto (consigo e com os outros.). Às vezes dói!!

Ele tem medo de sofrer, muito mais que da solidão ou da Morte; mas ele não pára: segue enfrente!

Ele quer respeito, e pra isso se esforça pra respeitar!

Sabe que todos erram (ele próprio odeia o fato de que erra!) e sabe que todo erro tem conseqüências... Assim como todo acerto!!
E, Ozmurd, como ele ama os próprios acertos – e os dos outros!!!!

Esse cara se encanta fácil e desencanta também!
Se magoa e se cura!
Esse cara tem esperança!

E, por mais que ache isso idiota e sem cabimento ou razão, não consegue deixar de tê-la!!!

Ele quer acertar, mas não quer acertar sozinho: quer dividir, compartilhar, apoiar... Amar a alguém! Com força igual (ou, ao menos, parecida) a como ama a si!
Ele pode ser duro nas palavras e nos gestos, contudo prefere ser suave em ambos...

Esse cara: assim um tanto tosco, um tanto ridículo, engraçado e até banal...





Sou eu: nada de mais






*Frank J. Costa*