segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

But I don't believe...


Depois de muitos anos... numa arrumação de natividade, encontro um bilhete teu; cometo o erro de abri-lo, de lê-lo...
Apenas para chorar.


Estou aqui.
Lembre-se de que eu me importo, que você se tornou extremamente especial.
Lembre-se de que não existe perigo em estar sozinho e que não adianta dar voltas ao mundo atrás da sua alma gêmea.
E não há nada que você possa fazer com relação a isso.
Lembre-se de que você deve se amar acima de tudo, que sua alegria passou a ser também a alegria de outros.
Lembre-se de não mudar por ninguém, de aguentar tudo de cabeça erguida e orgulho nos olhos...
Lembre-se de que nada e nem ninguém se compara a você.
Lembre-se de que o mundo vai ser sempre filho da puta e que vamos topar sempre com as pessoas erradas, mas temos sempre que ter coragem pra seguir em frente.
Lembre-se de não criar expectativas, mas ao mesmo tempo lembre-se de que se deixar levar pelo amor não tem preço.
Lembre-se de que quanto mais alto se voa, maior será a dor na queda.
Ignore todos os julgamentos porque, no fim, a dor você suporta sozinho.
Lembre-se que seu sorriso ilumina o mundo inteiro, e por esse motivo, lembre-se de sorrir agora.
E o tempo todo.
Ah, e mais uma coisa…
lembre-se que eu amo você. Sempre.


E me acabo agora em lágrimas, de saudade, de tristeza, de alegria, de frustração.


sexta-feira, 16 de novembro de 2012

*Letícia e Eu*


Fui amigo de uma garota chamada Letícia, nós éramos os melhores amigos na escola. Tinha um professor -de química-, todos nós adorávamos ele. Ele tinha um jeito de falar que encantava a todos, era a aula mais calma que tínhamos. Letícia era que um tanto apaixonada pelo professor Humberto, conversávamos muito sobre isso, riamos muito dessa coisa clichê "aluna-que-é-apaixonada-pelo-professor-que-nem-sabe-que-ela-existe", mas o professor Beto (era assim que ela gostava que o chamássemos  não era assim, ele conseguia dar uma atenção especial pra cada um de nós, os 30 alunos daquela turma bagunceira que dividia seu tempo entre idas à coordenação pedagógica, as aulas, a cantina e o pátio no intervalo, um dia o professor Beto disse à Letícia que precisava conversar com ela depois da aula. Letícia era a menina mais bonita e inteligente da turma, mas não percebeu... E nós ficamos zoando a menina dizendo que o Professor Beto ia se declarar pra ela...


Depois da aula, o professor drogou-a e a levou de carro pra um bairro distante, num terreno baldio, e estuprou Letícia violentamente. Com medo que ela contasse para alguém, ele a torturou por mais de duas horas, a estrangulou até a morte e a esquartejou, por fim enterrou os pedaços do corpo em sete buracos diferentes. O espírito de Letícia agora vaga por aquele terreno, assombrando os casais que por ventura se atrevam a entrar lá à noite. Agora que você leu a história de Letícia, te peço gentilmente para ajudar o espírito de Letícia a descansar em paz. Cace todos os estupradores do mundo, vigie-os, denuncie-os. Se você não fizer isso, Letícia irá te visitar, e fazer-lhe sentir a dor de ser torturado... Parece coisa de corrente, né  Mas deixa eu continuar...
No começo, nós não acreditávamos nisso, mas aí as coisas estranhas começaram: Luisa riu da história e disse que a culpa de Letícia ter sido estuprada era da própria Letícia, que se insinuava pro professor. No dia 18 de fevereiro seu corpo foi encontrado em pedaços no quintal da casa da namorada. O mesmo aconteceu com Amanda, encontrada estrupada e morta em casa, no próprio quarto, com portas e janelas trancadas por dentro. Nestes anos após a morte de Letícia, muita coisa estranha começou a acontecer na cidade. Muita gente morrendo de forma bizarra, e sempre tinha alguma ligação com o terreno, ou com Letícia.
Semana passada fui ao terreno baldio -nada conseguia ser construído ali, tentaram-se várias vezes, mas sempre ocorriam estranhos acidentes. Há um ano a prefeitura mandou mura-lo todo, mas no muro sempre aparecia um misterioso buraco, grande o suficiente para uma pessoa passar, até o dia que a prefeitura apenas colocou uma placa dizendo "Perigo. Afaste-se!".

Era uma noite de lua cheia e céu limpo, eu levava embaixo do braço um tabuleiro oui-ja que comprei num antiquário no centro, na biblioteca eu emprestara um livro sobre magia e o li até saber cada página de cor. Na outra mão uma sacola com outras coisas e meu caderno de anotações, onde eu anotara cada passo e palavra do Rito de Chamada.
Eu pretendia falar com Letícia, pedir que ela parasse com aquilo.


Entrei no terreno e senti um frio intenso cobrir todo o meu corpo 'ela está mesmo aqui' pensei. Fui até o meio do terreno -onde o jornal (que eu guardara desde o evento) dizia ter sido encontrada sua cabeça, com os olhos vazados, a língua cortada, ouvidos perfurados. A cena foi tão pavorosa que nenhum jornal da cidade publicou uma foto sequer.
Fiz de acordo com o manual: cavei uma pequena vala em círculo, derramei sal por toda ela, desenhei os símbolos com um galho verde virgem -recém tirado de uma roseira-brava que a família de Letícia mandara plantas daquele terreno em homenagem a filha -a única planta que viçava por ali. Nem um mato sequer crescia ali.
Coloquei a tábua oui-ja no centro do círculo, acendi os sete incensos, as quatro velas, comecei a recitar a evocação 

'Ego invocant te, spiritus sufferens, ad manifestandam vestra praesentia in loco isto iacet anima inlaqueaverunt'. 

Não sei como explicar, mas quando terminei a evocação, foi como se o silêncio da noite ficasse ainda mais profundo, quase sólido.
Alguns instantes depois, ouço vindo por de trás de mim uma voz rascada, como a voz pastosa de alguém que acabara de acordar dum sono pesado, profundo. 
"Estou aqui Ary. Eu sei porque me chamou. Eles tem que pagar."
Não me atrevi olhar pra trás, tinha medo de olhar o espírito da minha amiga. Continuei olhando a tábua oui-ja e meio que senti/ouvi um tipo farfalhar leve e percebi que ela estava à minha frente, do lado de fora do círculo protetor 'graças à Deus, isso funciona!' pensava nervoso enquanto suspirava... Finalmente falei 
"Lili, o Beto já foi preso. Pegou mais de 70 anos sem condicional. Ele provavelmente vai morrer na cadeia. Então..." o sangue pareceu gelar nas minhas veias quando ouvi aquela voz mofada, triste, dizer 
"Ele JÁ morreu, Ary. Porque você não me olha? Levanta o rosto!". Eu silenciosamente recitei 

'Creator universi dominum, mala res fragiles tueri. Quid mihi obest, non quod vultus ejus.'

 e ergui o olhar e então vi: era minha amiga, exatamente como eu me lembrava dela na última vez que a vi... Antes de tudo... Antes ''dele''. 
"Lili... Se foi você que pegou o pro... o Beto, porque ainda está por aqui?? Quer dizer, sei-lá! Se você já resolveu seu negócio pendente você não deveria ter atravessado, visto a luz o ou que quer que aconteça com os fantasmas quando eles quebram seus grilhões? Você está livre! Vá!" eu disse olhando dentro daquele olhos cor-de-amêndoa que eu tantas vezes vi rir e chorar e uma dorzinha aguda atravessou meu peito, me fazendo abaixar a cabeça levemente. O que vi me gelou o espírito e quase fechei meus olhos pra não continuar vendo aquilo: sobre a tábua oui-ja estava um triângulo de prata sólida polida, que eu deveria tocar com os dedos a cada recitação. Nele eu pude ver o reflexo de Letícia, mas o reflexo... Não era ela ali! Não como eu lembrava dela. Naquela imagem refletida eu via uma criatura com marcas de cortes profundos, onde vermes transitavam livremente entrando e saindo, via um maxilar quebrado, frouxamente pendurado pelos músculos rompidos, via buracos fundos donde escorria um líquido escuro e denso como óleo de motor, ali onde deveriam estar seus olhos. Segurando a vontade de gritar e fechar o olhos, ou virar a cabeça, respirei profunda e lentamente, me concentrei e recitei outro texto

 'Divinum angelicae potestates, invoco vos ad benigna lux entia, benignitatem, fortitudo et amoris, mihi tribuat, miserum me mortalis, omnia tua tutela contra impium dictitans malum, quod hoc mundo turbato qui subsannat vita quae data est a nascitur creatoris ipsius magistri vos mihi tantum et vagatur iam olim in vita moratus est. Custodi me!'. 

Tendo terminado a invocação, abri um sorriso que logo murchou em meus lábios ao ouvir a voz gutural, subterrânea, de Letícia dizer "Não posso partir Ary. O verme do Beto é apenas um entre vários outro monstros! E não é ele, nem minha vingança que me mantém aqui Ary. É o amor. O amor que aqui me agrilhoa.".

Muito lentamente, ainda com a cabeça baixa, comecei a desenhar os selos em minha palma-de-mão, com a primeira pena caída de uma ave de rapina. Argui: 
"Amor Lili?! Por amor você matou tanta gente que nunca te fez coisa alguma? Por amor você persegue a outros casais??". Nem bem terminei de falar e Letícia responde: 
"Sim. O amor que você sente por mim.". Foi ai que vento começou a soprar, apagando as velas e buscando desfazer o círculo de proteção e isso tudo reforçado pela voz de Letícia 
"E eu quero o meu beijo.". 

'Abhorret turbatus spiritu! Striga! Importantis strapae Amxalak vos et tenere profectum vestrum, protegens salutem meam, dans mihi transitum tutum ex hic.'. 

Vi uma luminescência rubra envolver totalmente Letícia, e no mesmo momento o vento parou, o frio cedeu um pouco. Juntei tudo que havia levado e corri pra fora daquele terreno.
"Eu te amei, Lili, mas você morreu. A vida continua. Você deve seguir adiante, em frente!" foi o que eu disse quando estava do outro lado do muro. Alguns dias depois em ocorrido, comecei a sentir calafrios pelo corpo quando estava sozinho, como se mãos congeladas me agarrassem.
Ante ontem tive um sonho onde Letícia aparecia me dizendo 
"Você não deveria ter me abandonado, Ary. Mas eu sei como resolver isto..." acordei entre tremores e suores frios. Por isso escrevo este relato. Sinto que hoje será meu último dia entre os vivos, e quis partilhar a história de Letícia e a minha. Se não tiverem mais notícias minhas, aos que me conhecem, me procurem em casa, atrás das portas trancadas...

José de Arymatéia da Silva

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

*Fico Triste*


Oi,
Escrevo esta carta, porque preciso falar com alguém sobre isso... E se é pra falar, que seja pra você!

Não sei se você vai dar importância, mas eu sinto tua falta.
Sei que você também sente de mim, mas às vezes sinto falta também de você dizer, demonstrar.

E fico triste...

Por que aí, parece que nunca será.
Não foi uma escolha racional me apaixonar por você, mas foi você que apareceu na hora que eu estava aberto pra novas tentativas.
Fui te conhecendo e, mesmo com os dissabores, raivas, aborrecimentos e etc. Comecei a amar o que você é. Não sei o que você quer ser, mas amo muito quem você é agora.

E mesmo que me fira em certos momentos, em horas incertas, ainda sigo te amando.

Ta um fim-de-tarde lindo e bucólico...
Queria que vc estivesse aqui comigo e isso, junto com a saudade, vão me entristecendo...

Agora tudo é banhado por uma suave luz laranja...

Tentei fotografar pra te mostrar, mas é um celular, não uma câmera...
Beijos, te amo!!

*frankj costa*

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

*L'oblit*


--É POSSÍVEL?!

Do interior duma casa antiga, com paredes nuas, de madeira, o grito parecia ter sido dado por uma alma que passasse por tormentos inimagináveis para qualquer mortal...

Dois homens, sentados à uma mesa que já conheceu dias melhores em sua existência tabular, cada um numa extremidade da pequena mesa: pratos amontoados, comida espalhada... baratas arrastando-se pelos cantos daquele cômodo que já há muito sofre com a incúria de seus ocupantes.

Subito um deles se levanta abre os braços e, olhando com mágoa para todo o lugar e para o outro homem a sua frente, fala numa voz dura, quase gutural, como se buscasse velar os sentimentos que os olhos já traíram:

--Construo isto aqui para o que? Para quem? Para ti?? Háh! Há muito que não demonstras qualquer interesse em minhas invencionices; minhas odisséias ordinárias, meus contos de sarjeta.

O outro homem, que premanecera sentado à mesa, olha com profunda tristeza para aquele a quem já amara um dia; mas que agora já não reconhece como seu Herói (como fora um dia):

--Não sou nenhum deus, ou se me pareço, não carrego comigo sua paciência... O que tínhamos desgastou-se! Não sei como, não sei porque... Mas já não nos fazemos mais bem, vivemos às turras. Brigamos por migalhas de pão!! Não sei se fui eu, se foste tu. Ou se simplesmente, acostumados já à presença um do outro, nos descuidados. Nos atiramos aos chacais do tempo, rotina e indiferença! NÃO SEI!!!!! Mas nossa situação já é insutentável. Peço de novo: me deixa ir! É melhor pra nós dois. Pra ti!

O homem de pé (alto, quase 2m de altura, de um amorenado na pele que certamente não vê o sol há muitos meses empalidecendo) riu de forma dura, deu a volta na mesa, aproximou-se do que estava sentado e sussurou, sibilante como uma serpente peçonheta:

--É este o deus que amei um dia(?): uma presença defunta, um fantasma, como aquele rei do Hamlet, a me pedir justiça... Liberdade!

Mordendo o lábio inferior, ainda mais pálido que o resto de sua pele; aquele pequeno homem alí sentado, indefeso... Respirou fundo levantou o rosto olhando o primeiro profundamente nos olhos:

--Eu preparei todas as mentiras... Eu fraudei o que não deveria ter sido fraudado!! Me arrependo! Mas não menti quando te amei!
Em momento algum menti ao estar sob as cobertas contigo. Jamais te menti isto. Sabias! Podias ver!! Menti sobre quem eu era, sobre minha família. Mas não sobre o que sentia! Deixa-me ir!

O primeiro homem se afasta, anda em torno da mesa. olha o outro que sentado ali, parecia tão pequeno... Tão inofensivo. "NÂO!!" pensou ele de súbito "Não vou me deixar amolecer!!". Riu um pouco e disse:

--Eu trago agora no coração uma floresta em chamas, nos olhos apenas dor... Ele é interrompido pelo segundo homem que chorando copiosamente diz que já passou da hora de se separarem! Continuar naquilo destruíria a ambos. Ele próprio já fora, não queria que seu amado também fosse.

Neste momento o primeiro homem, deixa cair uma lágrima.
Novamente se aproxima da mesa, agora empunhando uma esponja que pegara na pia quando passou próximo.

--Fuja de mim, então. Queres partir, e já não consigo mais te ver neste estado deplorável. Eis a verdade: Os mortos temem somente o esquecimento... Mas tu já não o teme mais.
Desejas o oblívio tanto quanto - ou mais - que eu te desejo aqui. Mas tens razão: Não faz mais sentido continuarmos aqui. Não te posso mais ferir. A não ser quando firo a mim próprio. Portanto: parte! Eu te liberto agora.

E com a esponja, aquele homem de quase dois metros de altura, mas magro como se não comesse há muitos dias, começou a apagar um intrincado desenho feito sobre a  mesa. Que jazia escondido entre os pratos e restos de comida.
Enquanto o desenho era desfeito, o homem que permanecia sentado sorriu ternamente, disse "eu te amo" apenas com os lábios, sem emitir som audível e começou a desaparecer.
Contudo, antes que desaparecesse duma vez, o primeiro homem o olhou nos olhos (que agora malmente eram uma sombra de olhos) e disse:

--Eu sei! Também te amo.

E com estas últimas palavras, o segundo homem sorriu ainda mais e desapareceu, enquanto a luz dum novo dia começava a entrar pelas frestas das tábuas daquela casa antiga.

*frankj costa*

domingo, 26 de agosto de 2012

*Το ένατο ώρα*

Muitas vezes, Marçal acorda na madrugada, levanta-se, vai ao banheiro e volta a dormir.
O mundo imerso em penumbra e silêncio....

Talvez por algum fator biológico - ou incrível acaso - a hora que isto acontece é sempre por volta de três horas.
Às vezes três em ponto, outras faltando pouco, ou passando um pouco.
Jamais havia prestado atenção a isto; até o dia em que começou a ouvir sons estranhos, como rugidos de animais ferozes.
Sentindo um arrepio sempre que ouvia esses sons.

Passados alguns dias deste estranho fenômeno, Marçal notou o horário: era sempre aproximado às três da madrugada.
E os sons começavam a ficar cada vez mais audíveis à medida em que os dias passavam: rosnados, vozes abafadas, gemidos e gritos -bem ao fundo, estrangulados.

Em busca de algo que explicasse tão bizarra ocorrência, começou a pesquisar, a procurar na internet. Encontrou referências a algumas religiões.
Mas quando procurou representantes destas religiões, foi algo bem frustrante: quase ninguém sabia dar explicação plausível, na verdade nem sabiam sobre o que ele falava.

Todos, menos um padre, que disse conhecer alguém que poderia ajudar.

Outro padre - já bem idoso - que vivia em um convento, praticamente isolado e pouco contato tinha com o mundo exterior.
Seria difícil falar-lhe, foi-lhe advertido, mas ele precisava tentar.
O padre Jayme (assim se chamava o que deu a informação) disse que tentaria contato.
Depois de muita dificuldade conseguiu.

Ai! Melhor não houvesse conseguido...

Foi ao encontro do tal padre.
Chegando lá, não pode negar (embora houvesse se esforçado) o susto ao vê-lo:
O sacerdote aparentava ser bem mais velho do que realmente era, sua fisionomia mostrando linhas de dor e sofrimento profundo.
Apresentaram-se e Marçal começou o relato dos acontecimentos que o levaram ali.
Padre Anastácio fixou seus olhos esgazeados em Marçal; olhou-o como se enxergasse-lhe a alma, e perguntou:

--Filho, tu realmente queres saber o que estes fatos significam? Estás preparado para saber o que tenho pra revelar?

Marçal, com certa relutância, respondera que sim.
Apesar do medo súbito que tomou-lhe o ser, ele precisava saber.

Padre Anastácio suspirou fundo, ajeitou-se numa cadeira - tão velha quanto ele - e perguntou:

--Tu sabes a hora em que Cristo morreu?

Marçal confessou não saber: tinha uma ideia vaga de que fora à tarde, mas não sabia a hora.

--Sexta feira, na Το ένατο ώρα”, como dito nos escritos gregos, a Nona Hora, ou 15 horas no sistema atual, respondeu o padre.  Quinze horas, ou 3 da tarde. Percebes?

Marçal:

--Não entendi o porque da pergunta.

--A que horas você costuma ouvir os sons? Perguntou padre Anastácio.

--Três da madrugada. Respondeu Marçal.

--Vês alguma ligação? Algo familiar? Questionou Pe. Anastácio.

E continuou:

--Os demônios satirizam o sacrifício de Nosso Senhor e usam este horário, três horas da madrugada, para festejarem, para se alegrarem em regozijo.
Aproveitam para andar pelas ruas, assustando quem por elas anda desavisado e fora de hora.
Algumas pessoas são mais suscetíveis a isto e acabam acordando perto deste horário, acabam ouvindo coisas. E, com o tempo, acabam vendo coisas...
Os sons que tens ouvido nada mais são que demônios expressando seu ódio e todo seu desespero: se arrastando pelas ruas.
Eu aviso: quando tu começares a vê-los, eles também ver-te-ão, e passarão a procurá-lo para se exibirem e o atormentarem com tal exibição.
Não sei se é o que esperavas ouvir, mas é o que tenho para a dizer.
Infelizmente.

Percebendo o terror nos olhos de Marçal, Pe. Anastácio, com um suspiro que pareceu um lamento agonizante, continuou:

--Com o passar do tempo, tu não somente os ouvirás, mas também verás coisas que tua mente jamais imaginou existir.
Agora tu sabes a razão de eu estar aqui; isolado e protegido neste convento: Somente terreno sagrado os detém! Apenas o Espaço de Adoração os pode impedir!

Durante muito tempo Marçal apenas ouvia os sons, cada vez mais altos, mais nítidos. E orava noites a fio, implorando jamais vê-los...

Finalmente, uma noite, começou a vê-los e não conseguiu mais dormir: o medo de acordar e defrontá-los, imenso. Experimentou soporíferos – em vão – pois sempre acordava à Hora Nefasta.
Há noites não dorme.
O que viu é algo aterrador, que ele deseja jamais ver novamente.

Hoje, Marçal está de mudança para o Convento e dividirá o quarto com o padre Anastácio.
Por medo e terror, pediu auxílio a um primo seu Pe. Lucindo.

Os demônios são impossíveis de descrição.
São o mal encarnado.
São o ódio vivo.
Existem.

terça-feira, 12 de junho de 2012

*SEELE*



Em quantas partes se pode dividir uma alma?

Uma parte pra cada emoção que uma pessoa pode sentir,
Uma pra cada crença que esta pessoa tiver,
Uma pra cada sonho, esperança, ilusão e decepção que ela nutrir.

Em quantas partes se divide a tua alma?

As minhas divisões, parei de contar quando cheguei na centena...

Três horas da manhã, ao longe ouço um cão solitário que uiva desesperançoso pra fria e morta lua.
Talvez uma gralha tenha cantado sobre mim, talvez tenha sido apenas o vento farfalhando as folhas...
Agora uma fina chuva começa a cair, escuto seu canto no telhado.
A temperatura cai, e caindo na inconsciência...

E, na inconsciência, me vejo envolto em espessa treva...
De súbito a escuridão se contrai e rasga-se em luz!
Todo o recinto, parvo, parco, estreito e lugubre se inunda de cores, se plena de sons e odores.
Mas ainda há um nicho de profunda sombra! Ela se move em minha direção, dela sai uma voz que diz:
-Guardião! Guardião! Me enviaram para te dizer que teu tempo está acabando. Já é hora de voltar pra casa, voltar pro céu.
Acordo sobressaltado. Fragmentos do sonho flutando em minha memória.
Um pavor gélido percorre minha espinha, os pelos da nuca se eriçam.
Não totalmente consciente, levanto da cama, ao banheiro, lavo meu rosto com água fria, tomo meu banho. Ao dejejum, como por hábito ponho dois jogos de café da manhã. E como todos os dias no último semestre, retiro um deles ao lembrar que não estás mais aqui. Um dia talvez eu me acostume com aquele prato solitário na mesa...
"É hora de voltar pra casa"... A frase soa repentinamente em minha lembrança, vívida como um ferimento recente, cruento e hemorrágico!
Quando olho pro relógio, não consigo evitar rir: ainda faltava uma hora até a alvorada.
Decidi seguir meu roteiro normalmente, apenas fazendo com mais vagar as coisas em casa.
Quando o sol principiou despontar no horizonte, sai de casa. Enquanto caminhava pro ponto de ônibus, uma outra vez a frase me veio aos ouvidos "hora de voltar pra casa.".
Quantas vezes eu não ligara pra dizer exatamente isso? "amor, já não é hora de você voltar pra casa?"?
Tanto que eu queria crer que fosse apenas um truque do meu cérebro, mas então voz deveria ser a mesma; mas não era. Simplesmente eu não reconhecia a voz que falara comigo no sonho, envolta na escuridão.

O dia transcorreu calmo, sem muitos aborrecimentos, pelo menos nada fora daquilo a que ja estou habituado.
Apenas quando cheguei em casa tive outro sobressalto: ao entrar senti cheiro daquele macarrão com molho madeira que você adorava preparar nas noites de sexta. Corri pra cozinha, estupidamente esperando te ver, mas tudo estava do jeito que deixei. Sem molho fervendo na panela, sem vc rindo porque tinha cortado o dedo, que continua sangrando -pela enésima vez- abrindo a lata.
Decidi tomar somente um café e fui assistir a um filme, sem me dar conta peguei um dos teus favoritos: "Quem tem medo de Virgínia Woolf".
Ri de mim lembrando que costumava te "ameaçar" com a destruição do disco, caso não fizesses algo como eu tinha pedido; e como você devolvia dizendo que quebraria minha coleção de Marvin Gaye.
Boas lembranças que pensei já ter esquecido, mas que agora vejo que nunca estiveram muito longe da superfície de meu coração!
Pus o disco, deitei na cama, aninhando os travesseiros ao meu colo, relembrando quantas vezes fiz o mesmo com você!
Quando chegou naquela cena memorável em que Martha confessa (mesmo que carregada de profunda melancolia, tristeza e mágoa) todo o amor que sente por George, lembrei da vez que, já bêbado, fiz algo semelhante, com lágrimas copiosas nos olhos...
"...hora de voltar pra casa..."
Como eu gostaria de poder te telefonar e dizer isto uma vez mais.
Desde que você partiu, nunca mais me permiti aproximar de alguém -não da mesma forma como me aproximei de ti.

Adormeci antes do fim do filme e acordei suado, um suor frio e pegajoso...
Nos olhos um brilho de lembrança que permanecia: a noite que te conheci.
Queimando em minha mente tal ferro incandescente, profundo, além de qualquer bálsamo.
Com o coração e a mente anestesiados, fui tomar um copo dágua, na porta da geladeira um bilhete "amor, vou viajar neste fim de semana, na terça to de volta! Não te preocupas que vou trazer aquele xadrez que te prometi, e VOCÊ vai me ensinar a jogar, ok?? Beijos, te amo!"
Não entendo como este recado ainda podia estar aqui! Já se tinham passado seis meses desde o acidente! Como eu pude não ter tirado da porta da geladeira?
O post-it, somado à recrudescente recordação que me acordara, foram demais... Me deixei cair sentado -encolhido- no chão da cozinha e o choro veio, aos borbotões!
"Teu tempo está acabando..." agora a voz repetia-se em meus ouvidos.
Cheguei a pensar, que se fosse eu do tipo religioso, poderia ter ouvido a voz da Morte. Mas nunca acreditei nestas coisas 'espirituais', mas frente aos acontecimentos de hoje... Não sei mais o que dizer, o que pensar!!
Aturdido, confuso, com a tristeza rasgando fundo no peito, resolvi sair no meio da madrugada. Depois de horas esperando um ônibus, um outro tanto de viagem, cheguei ao cemitério.
Fiquei ali naquela esquina escura, agarrado à grade, olhando pro teu túmulo enquanto escrevo isto e posto!
Das sombras sinto um frio cortante penetrando fundo em mim, algo quente jorra...
Uma dor fina, aguda, me atravessa o peito e finalmente ouço tua voz dizendo "Ai que saudade de você! Meu sofrimento já não cabia mais em mim!!"
Sinto teus braços me envolvendo, fecho os olhos e toda a dor, mágoa, tristeza e angústia me abandonam.


quarta-feira, 6 de junho de 2012

Das Sombras


Uma garota da cidade,
gosta de noites de lua e dias de chuva.
Ninguém entende porquê...
Todos a acham esquisita e, por mais que ela explique, ninguém entende.

À noite se pode ver as estrelas,
por isso ela prefere o campo à cidade,
e da natureza; pois sempre se vê melhor as estrelas lá.
Elas, as estrelas, lhe transmitem paz,
lhe mostram como o universo é grande,
libertam sua imaginação.
Não que não seja feliz durante o dia: gosta do dia,
do sol (bem melhor que o frio), ela não gosta do frio.
Pra ela, a cidade fica diferente:
com mais vida, mais alegria, nos bares, e todo mundo parece igual,
sendo espontânea, sem fingir que gosta daquele chato ou daquela irritante.

Na noite se escondem os mistérios, os segredos.

E a chuva?
Quando chove... aquela água gostosa relaxando os músculos.
Só assim o dia não fica quente (nem frio) demais: fica ameno, tranquilo.
Então ela se sente mais calma, como se o dia também estivesse mais calmo.
Sem a correria, sem a histeria sem o stress.
O ar fica mais limpo, o cheiro das coisas fica mais agradável; mais acentuado.
Lhe agrada o cheiro da grama molhada.
Quando chove, também, dá pra dormir, e sonhar.
Quando a chuva está mais forte, fica ótimo.

Quando faz calor os pensamentos dispersam.
Mas as pessoas nunca entendem isso.
Por isso ela vive só.
Ela vê isso nela: que todos a acham diferente, estranha.
E ninguém sabe lidar com o que é diferente.
Ninguém entende as sombras que acompanham aquela garota...

quinta-feira, 31 de maio de 2012

A Casa


Capitulo 1: Início do Pesadelo


Alan era um jovem sem muita perspectiva de vida, órfão, morava em uma casa simples que foi herdada de seus pais adotivos a qual partiram naturalmente em conseqüência da idade. Não possuía um trabalho fixo, fazia manutenção em microcomputadores que não lhe garantia uma renda fixa ao final do mês.
Não possuía parentes, em compensação, muitos amigos que enchiam principalmente os finais de semana sua casa. Um deles era Josué como se fosse um irmão, estavam sempre um ao lado do outro em todos os momentos.
Em seis de junho de mil novecentos e noventa e seis suas vidas iriam começar a se transformar quando, em uma manhã chuvosa e fria como a noite um telegrama é recebido por Alan. Uma suposta herança havia sido deixada em seu nome, no telegrama, uma prévia explicação de um imóvel deixado por um tio seu, irmão de seu pai de criação a qual nunca conhecera. Para mais detalhes o número de um telefone estampado para contato na parte inferior da folha logo à frente do logotipo do cartório em forma de castelo, o destinatário.
Alan ligou logo em seguida e recebeu mais detalhes da atendente que tinha uma voz muito sexy. Ela informou todos os detalhes, na verdade queria sua presença no cartório, mas este era muito distante, se localizava no sul do país, distante de Alan que morava no sudeste. 
Uma casa era o que a moça de voz sexy do outro lado da linha lhe dizia e para sua surpresa ficava na cidade vizinha a sua. Informou então apenas os dados de sua localização para que ele pudesse conhecer do que se tratava. Mas para a aquisição do imóvel em definitivo teria de seguir para o sul.
- Talvez onde esse tio meu morasse – Pensou ele.
O mais estranho na verdade era a parte que Alan não conhecia. Esse seu tio de fato morava naquela casa nos anos quarenta e fugiu para o sul acusado de alguns assassinatos, lá foi detido assim que pos os pés, mas foi solto logo em seguida, pois não havia provas o suficiente. Recentemente havia desaparecido e foi encontrado na base de uma montanha de joelhos com várias velas derretidas pretas e vermelhas, ao seu lado um papel enrolado como se fosse um pergaminho, nele escritos vários nomes. Famílias inteiras desaparecidas na época de sua fuga a qual muitos o culpavam, seu corpo estava em estado avançado de decomposição.
O primeiro amigo com quem compartilhou a notícia foi Josué, ele possuía carro e insistiu para levar o amigo até o local, parecia estar até mais ansioso que o próprio dono. Josué iniciava seu expediente no trabalho somente na parte da tarde, combinou então que passaria na parte da manhã na casa de Alan por volta de nove horas, pelo que calcularam estaria na cidade vizinha nove e meia e mais alguns minutos até achar a casa então daria tempo de conhecerem o local e voltar sem que Josué se prejudicasse no trabalho. Neste dia em especial não voltaram mais a se falar, Alan que sempre dormiu tarde às nove horas já estava na cama, talvez pela ansiedade não dormisse ainda mais cedo.
Dia sete, as dez para as nove Josué já estava em frente à casa do amigo que ainda como era de se esperar estava levantando, o sol brilhante iluminava o frio tentando espantá-lo, mas sem sucesso. Alan ficou pronto somente por vota de nove e quinze quando entrou no carro, pararam rapidamente na padaria da esquina para tomar um breve café e aquecer seus ânimos. Conversaram pelo caminho e o principal assunto como era de se esperar, a casa. Alan não estava querendo nem saber dela, em qualquer estado que tivesse sua idéia era vendê-la e montar seu próprio negócio, não sabia o que exatamente, primeiro iria analisar qual seria o seu valor de venda e em segundo plano iria ver o que conseguiria.
Chegaram à cidade vizinha no horário previsto, esta uma cidadezinha pacata daquelas onde as pessoas ainda se cumprimentam nas ruas, depois de algumas informações seguiram para uma estrada que aos poucos as casas que estavam a sua volta se transformaram em um matagal e por fim o asfalto, dando início a uma estrada de terra que mais se parecia com uma rua, bem estreita. No endereço a qual o papel escrito à mão por Alan indicava, encontraram apenas uma pequena entrada que se não fosse por uma placa toda enferrujada de número seis no final não teriam encontrado. Josué já estava fazendo cara feia de ter de entrar naquele mato alto para reabrir o caminho que há muito tempo ninguém passava, seguindo em velocidade baixa muitos eucaliptos estavam ao lado tapando a entrada dos raios solares que agora lutavam para penetrar entre as folhas. Os eucaliptos pareciam milimétricamente alinhados um de cada lado da pequena entrada mostrando a perfeição de seu antigo dono. Quanto mais se aprofundavam, outras árvores se juntavam aos eucaliptos fazendo o sol lá fora desaparecer. Josué estava prestes a desistir da idéia de ter levado o amigo até aquele local, o mato que antes atrapalhava a chegada naquele parecia ter dado trégua, mas a mata densa a volta prevalecia.
Uma casa, que parecia estar muito afetada pelo tempo estava diante deles, as árvores estendiam seus galhos sobre ela, parecendo protegê-la, o chão com uma terra preta e improdutiva a sua volta não deixava que o mato intenso que desde a entrada os acompanhava crescesse. Um cenário bonito de imagens antigas que só observamos em pinturas, mas ao mesmo tempo amedrontador, pois era real.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

ALÉM DA RESSURREIÇÃO



Daniel estava plenamente conformado. Deitado, mal conseguindo respirar, com insistentes dores por todo corpo apesar dos analgésicos, esperava com certa ansiedade o evento que poria fim a tudo aquilo. O Câncer já corroera seu organismo além da capacidade da medicina em restaurá-lo. As metástases não mais podiam ser detidas. 
Ele sabia que o fim estava cada vez mais próximo, e não ficava triste com isso, ou pelo menos não como sua família e seus amigos que o viam definhar dia a dia após quase um ano de luta. Por ser um homem ainda jovem, com 36 anos, sua morte era ainda mais trágica. 
Muitos de seus parentes eram religiosos, das mais diversas vertentes. Todos tentaram de alguma forma reconciliá-lo com Deus ou coisa parecida. Todos foram rejeitados. Daniel era completamente ateu. Um Ateísta Forte Convicto. Não apenas isso, era um Niilista. Acreditava em nada após a morte. Sabia que seu destino era a extinção, seja lá como ela fosse. 
Não esperava nada além da vida física. Não queria esperar. Não podia aceitar que existisse um Deus ou qualquer Justiça Divina. Não suportava crenças e supertições. Não apenas não acreditava na vida eterna, ele não a queria, ele não a suportaria, e a rejeitaria se existisse. 

Como todo bom ateu, Daniel trilhara um caminho pelo mundo das crenças. Nascera numa família Protestante Batista, mas nunca aceitou a visão desta religião. Na adolescência, por influência do namoro com uma espírita, chegara por uns tempos a crer em algumas idéias de Kardec, mas nunca as levou muito a fundo. Por volta dos 20 anos sua convicção agnóstica era mais que estabelecida, o passo para o atéismo fraco foi gradativo, mas o casamento com uma companheira que embora não religiosa, era aberta ao divino, o levara a ser mais moderado. 
Isso só mudaria no evento que marcaria sua vida e a de toda a sua família. A breve e sofrida existência de seu único filho, um pobre bebê que nascera com uma série de complicações de saúde, e morrera pouco antes de completar um ano apesar do intenso esforço de médicos e especialistas em salvá-lo. Uma criança que jamais tivera qualquer chance, que vivera apenas para sofrer durante a maior parte da vida, pois mais de 5 de seus meses foram em incubadoras, UTIs e similares, com a ajuda de aparelhos. 
Mesmo essa breve existência foi suficiente para um forte elo sentimental com a criança. Daniel se lembrava das vezes que o bebê lhe sorria como se o conhecesse há muito tempo, das ligeiras alegrias de uma pequenina vida que conseguia trazer-lhes momentos de felicidade, violentamente interrompidos pelos extensos períodos de drásticas cirurgias que tentavam desesperadamente evitar o que parecia cada vez mais inevitável. Lígia, sua esposa, não sofreu menos, mas suas crenças e esperanças tentavam minimizar a dor. 
Porém tudo foi em vão. Antes o bêbe tivesse morrido nos primeiros dias, não haveria tanto sofrimento. Mas ele vivera para experimentar toda uma sorte de dores e tormentos que a dureza da realidade de um organismo defeituoso poderia lhe proporcionar. Pouco antes dos 11 meses tudo estava terminado. 
Foi o fim de qualquer resquício de crença para Daniel, um sofrimento que se a alguns faz abraçar uma fé, a ele desenvolveu uma ojeriza contra toda e qualquer tipo de supertição ou religião. 
"Que maldito Deus seria esse que colocaria uma vida inocente no mundo apenas para sofrer hediondamente sem qualquer motivo?" Não adiantava também o argumento de que se tratava de um karma dos pais, pois era impossível crer que a criança não sofresse. "Teria ela também um karma a cumprir? Que espécie de experiência ou evolução poderia advir de um evento destes?" Para ele, a única boa desculpa de Deus era não existir. 

Fora uma breve existência, um vidinha que viera ao mundo apenas para o sofrimento de todos, que resistiu o quanto pode apenas para aumentar ainda mais a esperança e tornar mais devastadora a dor da derrota. Daniel nunca se recuperou da perda. Esterilizou-se, pois não mais suportaria a expectativa de ter outro filho, separou-se de Lígia devido a seu apego ainda mais forte à religião, e ambos nunca mais se casaram. E sem dúvida lançou as sementes psicossomáticas que viriam a resultar 8 anos depois no Câncer que agora, lhe ceifava a vida. 
Ele era um felizardo se comparado com o Huguinho, seu filho. Pois vivera as alegrias e bons momentos da vida, tivera a chance de lutar e não se sentia apesar de tudo como um infeliz. Mesmo com essas tragédias, ainda considerava o saldo de sua vida positivo. 
Agora era o fim, após tão intenso e conformado sofrimento em hospitais, Daniel esperava a morte. O Nada. O Descanço Eterno. 
Os médicos já haviam preparado a família, que de mãos dadas, ignorando as diferenças religiosas, orava pela alma de seu incrédulo companheiro que agora partia. Rogavam pela piedade divina. 
Lígia estava entre eles.


Daniel agora estava sozinho. Mesmo que imerso numa multidão não mais seria capaz de perceber-lhes a presença. Todos os seus sentidos falharam. Apenas sua mente ainda tinha um momento de lucidez entre as inúmeras escuridões. Teve um breve momento de paz, de total ausência de dor, e percebeu que a hora chegava. 
Ele se conscientizou plenamente do fim. Ele sentiu o vazio, olhou nos olhos do Não-Ser, e subitamente, e diferente do que esperava, percebeu o breve porém intenso desespero da contemplação direta com a Aniquilação. 
De repente, diferente do que esperava, quis voltar a viver, quis ficar pelo menos mais alguns dias, quis adiar o momento inevitável. Lembrou quando disse a sua ex-eposa, ao segurar-lhe a mão. "Eu queria tanto ficar... Com você... Nunca mais brigaríamos... E pensar nas tantas bobagens pelas quais sofremos... 

...Eu queria ficar..." 

Mas ele se ia, sentia o fim inevitável. E o que pensara durante a maior parte da vida ser um tranquilo caminho para a paz definitiva, parecia agora um aterrorizante avançar rumo a um abismo que inexplicavelmente, lhe parecia tenebroso. 
"Por que a Inexistência deveria ser temida? Se nada sentiremos." 
O que explicaria agora esse incompreensível temor do fim? 

E então, pouco a pouco, a consciência foi se desvanecendo, sinapse por sinapse, neurônio por neurônio, partícula por partícula... 

Até o fim... 

... 

" - Daniel..." 

" - Daniel..." 

" - Daniel?" 

" - Daniel... Se puder nos ouvir... Preste atenção." 

" - Somos amigos Daniel, não tenha medo. E precisamos lhe perguntar algo." 

" - Você sabe o que ocorreu. Sua vida chegou ao fim. Seu corpo foi destruído." 

" - Mas não foi o seu fim. Não tem que ser. Se você quiser, pode continuar vivendo. Nós podemos lhe dar uma nova chance, uma nova vida." 

" - Mas nós não podemos fazer isso Daniel, sem a sua autorização. Você precisa permitir que nós o ajudemos, portanto preste atenção." 

" - Daniel... Você deseja viver novamente? Deseja recomeçar a vida em um novo corpo, com a mesma mente?" 

"..." 

"...Responda Daniel... Por Favor... Precisamos de sua resposta." 

"Daniel?" 

"Daniel..." 


Daniel não sabia se havia de fato vivenciado o vazio, contemplado o Não-Ser. Mas sabia que algo acontecia. Sentia que algo dera errado, muito errado, e não era um sonho. 
Não fora o erro de não ter morrido por ainda estar na UTI do Hospital. Ele sabia que seu corpo não mais existia. Tinha consciência de sua morte. Então por que ainda não havia acabado. Por que ainda sentia? E pensava? 
E agora aquela voz... Aquele algo em sua mente... 
Alguém o chamava, e sabia ele, não era um alguém qualquer. 

Por que não acabara?! Por que não o deixavam partir em paz?! 

Mas de súbito, o medo do vazio o atacou novamente, e uma inexplicável vontade de continuar vivendo se apossou dele, ainda que fosse viver naquela horrível cama de hospital, mas era melhor do que nada. Ele não sabia porque, mas sentia-se assim. 

Mas e agora? O que havia naquele além morte? Naquele além vida? 
Seria Deus? Qual deles? Espíritos? Quem seriam? 
Seria punido por ser descrente? Seria aquela terrível sensação de medo do vazio, o inferno propriamente dito? 

Se sim, ele admitia então que o Inferno era mesmo incogniscível às pessoas vivas, mas nada poderia ser mais aterrorizante. Queimar num braseiro ou sofrer torturas estranhamente ainda pareciam melhores, pois pelo menos havia existência. 
Seria essa deficiência humana, esse desejo irracional de existir que atinge mesmo os animais, o motivo pelo qual de fato havia algo além da morte? Como se a mente mesmo tendo seu cérebro destruído, se recussasse a cessar? 

" - Daniel?" 

O que era aquilo? De quem era aquela voz? 

" - Daniel... Precisamos da resposta." 

Não parecia ameaçador. Parecia amigo. Mas oferecia o quê? A vida eterna? 

" - Daniel... Não temos a Eternidade." 

Estaria ele errado durante tanto tempo? Haveria mesmo a vida pós-morte? 

" - Por favor Daniel... Precisamos da resposta." 

Poucas vezes em vida ele cogitou essa possibilidade. Como se sentiria se descobrisse a existência da vida pós-morte? Como seria se deparar com aquilo que em vida lhe era uma crença que inspirava tanta repulsa? 
Mas agora... O Vazio parecia tão aterrador... 
Ele queria viver. 

" - Daniel... Sentimos Muito Daniel." 

Ele queria! Estranhamente ele queria viver! 

" - Você tomou sua decisão." 

De repente todo o seu ódio pelas crenças em divindades e vida após a morte é que foi aniquilado. Ele queria viver. 

" - Adeus Daniel." 

Porém o que fazer? Ele tentou gritar, mas é claro que não tinha voz. Aliás não havia som. A "voz" que ouvia não era uma voz. Também não tinha membros. Só podia pensar... E sentir... 

"..." Não... Não!.. NÃO!!! 

NÃÃÃÃÃOOOOO!!!!!!!!!!
Ocorriam no sentido inverso todas as sensações que Daniel tivera na reta final de sua jornada para a morte. Um breve nada, e então uma indescritível e suave sensação. No começo era como ter a mente vazia e vê-la sendo preenchida. Não sabia o que quer que fosse até lentamente se lembrar de algo, ainda que imerso num sonho. 
Primero "ouvira" uma breve vibração, e pouco a pouco, "sombras" e "luzes" mentais iam se tornando menos confusas e letárgicas. Tinha consciência de si mesmo como um ser, embora totalmente desorientado sobre tudo a sua volta, como se sem identidade. Estranhas e indefiníveis sensações começavam a aumentar de frequência, ouviu uma batida surda e forte, e outra, e mais outra. 

Sentiu o coração pulsar, e sentiu ter um corpo. De repente, sentiu algo invadindo seu ser, o ar. 

Como era bom respirar! Um verdadeiro prazer. Após tanto tempo respirando com a ajuda de aparelhos, sentiu pulmões fortes se encheram do mais puro e delicioso ar. Tanto que se empolgou e começou a respirar aceleradamente. 
Então as sensações se multiplicaram, sons difusos, aromas, a língua meio anestesiada mas sentindo os dentes. Espamos musculares suaves se espalhando por todo o corpo. 
Sentiu então que seus olhos estavam abertos, mas a visão demorava a chegar. Via manchas desfocadas se movendo ficando mais definidas pouco a pouco. Sentiu que seu corpo estava sendo movido. 
Por fim uma luz intensa se tornou mais suave, percebeu como se uma porta se abrisse e distinguiu vultos humanos, ficando cada vez mais definidos. Várias vozes incompreensíveis mas calmas, até que uma se destacou, e era inteligível apesar de um sotaque estranho. 

" - Olá Daniel. Seja Bem-Vindo. Não tenha medo." 

Do que teria medo? Se sentiu de repente mais forte do que nunca, e então se mexeu, percebendo estar numa cama macia, usando apenas um tecido suave sobre o corpo. 
Tomou bastante tempo contemplando seu velho e bom corpo, ou melhor, novo corpo. Era ele, sem dúvida, o mesmo físico apesar de no melhor estado que já estivera, até algumas manchas típicas embora algumas cicatrizes houvessem sumido. Deslizou as mãos sobre o rosto, cabelos, peito. Estava em excelente forma, mas era seu corpo. 
Agora sua visão era nítida. Estava num abiente claro embora de tons amarelados (como os desta página), alguns homens e mulheres o observavam, todos de ótima aparência, altos e de bom porte físico, olhares simpáticos, e usando roupas leves, em tons ocre e amarelo. 
Havia uma estranha mobília, ou seriam aparelhos? Estaria num tipo de hospital? 
Foi gentilmente convidado a se levantar, e o fez sem muita dificuldade apesar de uma ligeira vertigem. Fazia vários meses que ele não podia ficar de pé, e agora estava lá, a olhar para um recém-surgido espelho, mais saudável do que nunca, aparentando a mesma maturidade embora com uma aspecto mais jovial. 

- ...Onde eu estou? 

- Calma Daniel. Tenha um pouco de paciência. Alguém que você conhece logo virá lhe assistir. Enquanto isso venha conosco. 

O homem o conduziu até uma área aberta. Ele respirou um ar diferente, mas agradável, e contemplou um céu amarelado, com algumas nuvens. Num lado do horizonte havia um amarelo quase intenso, decaindo até o outro lado num ocre bem escuro. 

- Mas... Onde estou?! 

- No planeta que você conhecia pelo nome de Vênus. Alguém vem ver você. 

- Daniel! 

Ele reconheceu a voz, e deparou-se com Lígia, sua ex-mulher, mais linda do que nunca, veio correndo a ele e lhe abraçou em lágrimas de alegria. 

- Que saudade... 


Minutos depois, Daniel e Lígia caminhavam por uma passarela ao ar livre, de onde ele podia ver, abismado, uma cidade de visual quase surreal. Não lhe parecia tecnologicamente avançada segundo as expectativas de seu tempo, mas a maneira como certos objetos flutuavam, ocasionais aparecimentos repentinos que sugeriam teletransporte, e o fato de o planeta Vênus estar colonizado e perfeitamente habitável, o levavam a não ter como duvidar do nível tecnológico que via diante de seus olhos. 

- Agora que estou mais calmo. Pode começar a explicar. 

Lígia lhe sorria, com alegria incontida. Era sem dúvida a mesma mulher que ele amara em vida, mas estava mais bela do que nunca. Daniel não disfarçava o nervosismo, e Lígia logo dissipou seus temores. 

- Não tenha medo. Você está vivo, está bem, e estamos juntos de novo. 

- Como posso estar vivo?! 

- Eu não disse que havia vida após a morte? Você foi ressuscitado. Mas não se assuste. Não há o que temer. Não há tribunais celestes, não há julgamento, não há anjos ou deuses. Não literalmente. 

- Então quem me ressuscitou?! 

- Ciência! A Ciência Humana. 

- ...O, quê?! 



- Fazem mais de 8.000 anos desde que nós morremos. Eu morri 5 anos depois de você, e a vida continuou para as outras pessoas. A humanidade continuou. 
Foram muitas guerras. Muitos atrasos, muito sofrimento, mas o mundo progrediu, resistiu, evoluiu. 
Menos de meio milênio após termos morrido, a Genetologia e a Medicina já tinha eliminado todas as doenças que assolaram o mundo desde o começo da história. A crescimento demográfico foi controlado, em parte pela colonização de outros planetas, e a vida se tornou bem mais longa. 
Algumas pessoas já viviam mais de 300 anos, e cada vez mais esse limite foi extendido, até que cerca de mil anos depois, por volta de... Deixe-me lembrar a escala de tempo cristã... Do ano 3600 depois de Cristo, conseguiram a Imortalidade. 

- Imortalidade?! 

- Sim. Quer dizer. Imortalidade relativa é claro. Há pessoas vivendo há mais de 6.000 anos mas ninguém garante que vai ser pra sempre não é? 

- Entendo. Incrível. Você é imortal? 

- Eu e qualquer pessoa, inclusive você. Nossos novos corpos tem limite indefinido. 

- Uau... Tubo bem mas... 

- Calma. Deixe eu explicar. Naquela época só os que nasciam sob produção controlada ficavam imortais. Demorou mais de 1200 anos para que o benefício se extendesse a toda a humanidade. Foi preciso muita discussão, muitas campanhas e lutas de opinião. Mas desde 4950 todas as pessoas que nascem não mais envelhecem ou morrem, embora você possa envelhecer se quiser, com o tratamento adequado, também pode morrer, nossos corpos apesar de não adoecerem e serem muito mais resistentes, não são indestrutíveis. 

- Não será cansativo? Viver tanto tempo? 

- É! A maioria das pessoas não aguentar viver mais que uns 400 anos com uma mesma personalidade, mas em geral optam, ou optavam, por apagamento de memória, para uma nova vida. 

- Por que... Optavam? 

- Por que depois surgiram opções melhores. Mas me deixe continuar 
Entretanto havia aqueles que ainda eram limitados, vivendo no máximo uns 600 anos, e é claro que muitos não queriam morrer. Queriam ser como os outros. Isso deu muita confusão, e uma guerra acabou acontecendo. Mas em 5700 um novo avanço viria eliminar de vez a mortalidade involuntária no mundo. 

- O quê? 

Ligia apontou para uma plataforma de onde surgiam e sumiam pessoas. 

- O teletransporte. 

Daniel ficou coçando a cabeça pensativo. 

- Não entendi. O que o teletransporte tem haver com isso? 

- Bem. Na verdade eu fiz uma pequena confusão. Já era possível entrar num portal e aparecer num outro desde 5160, através de um túnel que... Quero dizer... 

- Um túnel?! Que liga lugares distantes? 

- ... Não mas... É. Mais ou menos. É como um atalho invisível entre um local e outro. Mas depois surgiu o teletransporte molecular, onde um objeto pode ser desintegrado e depois reintegrado em outro lugar. 
Aí, descobriram que era possível não apenas transportar, mas também criar. 

- Tá. Mas o que um tem haver com o outro? 

- É que o computador que organiza as moléculas, que desmonta e remonta as partículas, também pode ser usado para construir um corpo novo a partir de qualquer outra fonte de matéria. 
Então se constrói um corpo novo para a pessoa, e se destrói o antigo. 

- ... - 

Daniel ficou olhando para ela, incrédulo. 

- Mas e a... Consciência? Uma cópia sua não é você! 

- ...Bem. Essa é a parte complicada. 



- Tá. Vamos ver se entendi. Primeiro descobriram como aumentar a vida até chegar na imortalidade, então todas as pessoas passaram a nascer imortais mas ainda havia gente mortal, então deram uma jeito de transferir a mente desses mortais para novos corpos imortais? 

- É isso. Você não mudou nada. 

- ... É! Mas como fazem isso? 

- Ainda é um mistério. Mesmo com todo o avanço nós nunca descobrimos direito porque isso funciona assim. 

- Nós quem?! 

- Nós! A humanidade! 

- Ah... 

- Existe um tipo de comunicação telepática entre dois cérebros iguais, que sejam totalmente iguais. Cópias. Quando se ativa o novo corpo, a mente parece ficar dividida entre os dois. Os dois sentem as mesmas coisas, podem se comunicar a distância. Mas lembre-se que tem que ser iguais! Com as mesmas memórias, mesmas impressões e experiências acumuladas. Não adiantariam ser só clones com um histórico de vida diferente, eles teriam que ter tido vidas absolutamente iguais. O que é impossível. 

- Telepatia? 

- Sim. Acho que sim. 

- Mas e quando um morre? Quer dizer, quando o antigo morre? 

- A mente fica toda num corpo só. 

- Quer dizer que se criarem outro corpo meu, ia ser como um irmão gêmeo que... Vê tudo que eu vejo, sente o que eu sinto... 

- É isso. Tanto que se fizessem isso agora você saberia na hora. 

- E há pessoas duplas andando por aí? 

- Sim. Mas a maioria não gosta, e nem consegue. Acho que deve ser enlouquecedor. Mas há alguns por aí que chegam a possuir várias cópias. Com o tempo, aprendem a viver dividos em vários corpos. Na verdade muitos cumprem papel importante na sociedade, servindo de telecomunicadores até mesmo entre planetas diferentes. 

- Incrível. E então deixam o corpo antigo morrer? 

- Sim. O desintegram. 

- Mas por que isso acontece. Como é que existe essa... Comunicação entre os duplos? 

- Ninguém sabe ao certo. É o maior mistério que existe. 

- ... Sei. O que você disse sobre as pessoas que, ao invés de apagar a memória com o mesmo corpo fazem outra coisa melhor? 

É que é possível criar uma nova cópia mais jovem, criança, e transferir a mente. Como o cérebro é diferente, muitas informações se perdem, mas a... Essência é a mesma. 

- Mas aí deixa de ser a mesma pessoa. 

- É... Se perde a memória. Mas depois se quiser, é só criar uma nova cópia exata do corpo original, se os dois estiverem vivos, entram em sintonia parcial, e com o tempo vão se tornando um só, até chegar numa época em que um dos corpos pode até morrer que toda a memória do outro é preservada. 

- ...Impressionante. Tá mas peraí. Vamos voltar ao assunto. Como é que eu fui ressuscitado? 

- Eu já ia continuar. Com essa nova técnica, todas as pessoas ainda mortais que quiseram foram transferidas para novos corpos, mas começou um problema. 
Passou a se dar muito mais valor a vida física. A essa altura nenhuma religião daquelas que nós conhecíamos na nossa vida antiga existia mais. O apego à vida física foi aumentado e o medo da morte ainda mais. 
Então muitas pessoas as vezes queriam uma cópia apenas para não correrem o risco de morrer, mas não demorou para perceberem uma coisa muito mais estranha, que é na verdade parte deste grande mistério. 

- Hum... 

- Muitas pessoas que já haviam morrido tinham sua estrutura cerebral registrada, partícula por partícula, e os computadores podiam então criar um novo corpo mesmo de alguém que já tivesse morrido, e aí... Advinhe? 

- As pessoas voltaram a vida? 

- Sim. Com todas as memórias, toda a personalidade de quando morreram, intactas. Preservadas como se tivessem sido congeladas no tempo. 

- Quer dizer que a... Mente, a mesma mente além de poder existir em mais de um cérebro... Também continua existindo mesmo depois de nenhum corpo? 

- É! E não importa há quanto tempo a pessoa tenha morrido, quando o novo corpo é construído a pessoa ressuscita, sem ter percebido nenhuma passagem de tempo. É como piscar os olhos e acordar no novo corpo. 

- Mas... Isso é... Muito difícil de acreditar. 

- Eu sei. Também demorei muito para engolir isso tudo. Como você acha que eu me senti? Minhas crenças foram todas derrubadas. Hoje não acredito mais em quase nada daquilo. Acredito em Deus, e sempre continuarei acreditando em algo divino, mas... 

Daniel fez sua típica expressão de aborrecimento quando Lígia insistia nesse assunto, mas ele não estava em condições vantajosas, afinal sempre duvidara que fosse possível a consciência ser preservada após a morte do corpo, e agora via que era verdade. 

- Por que me olha desse jeito? Lembra quando apostamos que havia vida após a morte? 

- É mas você falava em mundos celestiais, reencarnação, mediunidade... 

- Tudo bem. Mas há vida após a morte do corpo não? Você acha que é só uma cópia do verdadeiro Daniel? Você tem dúvidas de que você é você mesmo? Eu não tenho. 

-... Tem muita coisa estranha aí. Quando eu morri eu não era o mesmo de quando tinha 25 anos. Agora meu corpo é diferente daquele corpo estragado pelo Câncer. 

- Sim! Mas você é você mesmo não é? 

- É... Mas não entendo como. Aqueles anos finais fazem parte das minhas memórias, mas esse meu novo corpo... É como se fosse cópia daquele de quando nós... 

Ele se lembrou amargurado de seu filho pequeno, que vivera tão pouco tempo, e de repente ficou a pensar, com medo de perguntar. 

- É por que a ressuscitação acontece em dois estágios. Primeiro eles criaram um cópia do seu corpo no momento em que ele estava para morrer, logo em seguida criam o corpo saudável e imortal, e deixam o antigo terminar de morrer. Aí sua mente é definitivamente transferida. 

Ele se levantou, de repente chocado e impaciente. 

- Mas... Mas como é que copiaram meu corpo?! A tecnologia desse tal registro cerebral... É, estrutura molecular... Só surgiu milhares de anos depois de eu morrer! Como é que tinham o meu registro?! 

- É aí que entra em cena outra grande revolução, que aconteceu no ano 8950, há pouco mais de um milênio atrás. 

- Em que ano estamos? 

- Tive que fazer as contas de acordo com o calendário do século XX, pois sabia que você perguntaria. Agora equivale ao ano de Onze Mil Cento e Quarenta e Sete. 

- ... Caramba... 11.147. 

- Essa descoberta, na verdade não exatamente uma descoberta... Todas essas conquistas foram lentas, passos cuidadosos. As possibilidades já eram muito discutidas bem antes de se concretizarem. 
Aperfeiçoou-se um meio de "ver o passado", quase como se fosse uma Viagem no Tempo. Só que não se pode interferir em nada no passado, quer dizer, não se vai ao passado realmente, mas se pode vê-lo! 

Daniel olhou pra ela quase aborrecido. E se levantou para caminhar. 

- Ah... Me dá um tempo. 




Daniel caminhava por uma das plataformas que ofereciam uma vista da cidade. O visual era um espetáculo. Um forte foco de luz no horizonte parecia ser o Sol, que mesmo coberto por montanhas era muito grande e desde que ele o vira pela primeira vez, há várias horas, não parecia ter se movido. 
De fato Vênus tem o Dia maior do que o Ano. Ou seja, enquanto o período de rotação do planeta em torno de seu próprio eixo demora 243 dias da Terra, uma volta completa em torno do Sol dura 225. 
As zonas mais habitadas do planeta eram as polares, pois era um mundo muito quente, isso explicava o sol no horizonte. Havia poucas nuvens e as estrelas eram visíveis bem nítidas no zênite, o alto do céu. 

- Está vendo as estrelas? 

- Sim. 

- Sabe que estamos vendo imagens do passado não? 

- Sei. Muitas delas se apagaram há milhões de anos. 

- É mais ou menos assim que funciona. Se você apontar uma Super visualisador para algumas destas estrelas e conseguir ver um de seus planetas, e se nesse planeta houver uma avançada civilização, você veria aquilo que agora é apenas o passado desta civilização. 
É simples. A matéria parece ecoar no tempo. Cada gesto que fazemos fica registrado no espaço. Aprendemos a viajar pela galáxia em velocidades maiores que a luz. Quer dizer, através de túneis, parecidos com o de teletransporte. Então colocamos centenas de super telescópios apontados para a Terra, e vemos o passado, só vemos, não podemos ouvir nem tocar. 
Podemos até congelar a imagem, usar visões que atravessam os objetos sólidos, como um Raio-X. Os computadores através dessa imagens conseguem interpretar toda a tridimensionalidade, e reconstroem tudo num simulador. Aí usamos os scanners para mapear o cérebro e todo o corpo, podemos então ler a posição exata de cada partícula, e criar uma cópia fiel. 

- E aí ressuscitam os mortos... 
Você mudou Lígia. Ficou tão... Inteligente. Você era mais simples. 

- Daniel... Esse é um mundo novo, é preciso aprender bastante se quiser acompanhar o progresso. Não dá pra ficar pra trás. 

- Eu não sei se estou preparado para esse mundo. 

- E não está mesmo. Ninguém assim que é ressuscitado está. Mas não se preocupe, tem muito tempo pela frente pra aprender. Se quiser. 

- Ainda não entendi... Quer dizer. Então foram para um local distante do espaço, apontaram um telescópio para a Terra e me viram! Então com minha imagem... Me copiaram!? 

- Exatamente. Simples não? 

- E as outras pessoas? 

- Ahh... Isso foi um grande problema. No começo ressuscitou-se só algumas pessoas. Na verdade essa possibilidade já era discutida há muitos séculos, e várias pessoas já haviam declarado antes de morrer que iam querer ser ressuscitadas. Foram as primeiras. 
Depois passaram a ressuscitar todas aquelas pessoas que claramente gostariam disso, e que fossem interessantes e produtivas para a sociedade. Mas com o tempo a tecnologia evoluiu, ficou mais acessível, e sistemas de visualização foram espalhados em várias outras estrelas, até sermos capazes de ver há mais de 40 mil anos no passado. Nós já podemos chegar a mais de 50 mil anos-luz de distância, mas daí pra frente o sistema ainda não consegue reconstituir as imagens com precisão. 

- Espera! E não encontraram... Nenhuma outra civilização? Alienígenas?! 

- Vivos não. Mas achamos vários vestígios de civilizações que já desapareceram, até em Marte! Aliás, podemos vê-las. 
Mas me deixa continuar. Com o tempo podia-se ressuscitar qualquer um, bastava captar as imagens, processá-las, interpretá-las com os computadores e captar todos os dados necessários. Aí cria-se um arquivo contendo... A Fórmula de cada um, e podemos ressucitá-los na hora que quisermos. 
Mas isso deu muita confusão. Muitos achavam que não devíamos fazer isso, que seria uma violação do direito da pessoa, tanto que é obrigatório que a pessoa autorize a ressuscitação. É por isso também que primeiro criam uma cópia idêntica, entram em contato e perguntam se ela quer viver de novo. É claro que a maioria quer. Mas não todos. Por isso as vezes, por insistência de amigos ou familiares que já foram ressuscitados, é preciso tentar várias vezes. 

Ela enfatizou a última frase e lançou-lhe um olhar curioso. 

- Chegou um dia que decidiram que nós tínhamos um tipo de obrigação sagrada de ressuscitar toda a humanidade que já existiu, então criamos o projeto científico mais importante da história. 
Vamos ressuscitar todas as pessoas, e povoar a galáxia. São só até agora... Mais de 60 Bilhões! E isso por que ainda não conseguimos ver muito antes de 40 mil anos atrás, mas não vai demorar muito. 
Há dezenas de planetas colonizados Daniel, onde estamos redistribuindo a humanidade de todos os tempos. É claro, tem muitas complicações. 
Pra começar o problema cultural, principalmente religioso. Para alguns povos foi preciso criar um mundo simulando toda sua mitologia, para dar a eles mais ou menos o que esperavam após a morte, e depois, aos poucos, esclarecê-los. Existem mundos simulando as mais diversas formas de crença religiosa após a morte, para evitar um choque muito grande. Há mais de um mundo simulando as profecias Bíblicas do nosso tempo, onde milhões de crentes estão satisfeitos com a aparente realização das promessas de sua religião, aos poucos vamos conseguindo retirar alguns mais preparados, mas há outros, tão bitolados que... Ficam séculos! 
Em compensação tem outros que se adaptam rápido. Um de meus instrutores havia sido um índio de nossa época, mas que vivia na Amazônia em uma das tribos ainda selvagens, que nunca havia visto a civilização. Ele aprendeu tudo em menos de 6 anos. É um gênio! 

- ... E... Quantos já foram ressuscitados?! 

- Dos que já podemos quase todos. 

- E... Então nossos parentes?! Nossos amigos?! Quero vê-los! 

- Calma Daniel. Todos já foram ressuscitados. Você foi o último. Nós vamos vê-los, mas a galáxia é grande, e muitos viajararm. Daqui para a Terra ou para Marte é rápido, mas para outras estrelas, pode levar anos. A não ser que você esteja disposto a encarar uma duplicação de corpo. O que a maioria não quer. 
Sabe. Até para a Mente o espaço impõe limites. Se você for duplicado num sistema a alguns milhares de Anos-Luz daqui, a comunicação entre os corpos fica atrasada, a mente fica confusa. 
... O que foi? 

- O último? Por que eu fui o último? 

Lígia fez um suspense, mostrava que era difícil falar sobre aquilo. 

- Bem... Como eu te disse, não podemos violar o direito da pessoa de não querer reviver. Sempre tentamos de novo, mas alguns demoram muito para aceitar. 
Você Daniel... Foi um dos que mais resistiu. 

Ele ficou a olhar para ela, num misto de surpresa e indignação. 

- Você resistiu tanto que chamou atenção de alguns estudiosos. Sabe quantas vezes nós tentamos Daniel? 

- ... 

- Seis vezes! Você quebrou o recorde! Até agora o máximo que haviam resistido era 5. 

- ...Mas... Eu não... Quero dizer. Eu acho que sei... 

- Sim. Você sabe. Você não apenas não acreditava que pudesse haver vida após a morte, você não queria que houvesse. E desejava isso com muita força. Você odiava essa idéia. É muito difícil convencer certas pessoas. 
Em você havia esperança, por que há alguns que são tão fechados que basta uma tentativa para percebermos que não aceitarão nunca. Esses são os intocáveis. Uma ínfima minoria. Mas existem. 
Mas dos que podiam ser convencidos... Você realmente quase nos fez desistir. 

-... Mas, eu não me lembro disso. 

- Não dá pra lembrar. Só se sempre recriássemos o corpo a partir da última tentativa. Não é assim, sempre criamos a pré-cópia, quer dizer a cópia idêntica, a partir do corpo original em cada tentativa, para depois criarmos o corpo imortal se a pessoa aceitar. 

Subitamente ele começou a rir, discretamente. 

- ... Então essa é a punição para os que não crêem... Ficar por último. 

- Ressuscitamos todos Daniel, até loucos, e os tratamos. Pessoas que sofreram muito são recompensadas. Criminosos são reeducados. Estabelecemos uma Lei que proíbe qualquer tipo de julgamento jurídico não importa os crimes cometidos. Algumas pessoas realmente dão problemas. Mas nada grave. Só os que não podemos, ou que deixamos por último, são o que não querem ser ressuscitados. 

- ... Ressuscitam todos? 

- Sim Daniel. Não importa a idade. 

- Mas então... Ele? 

Ela sorriu, e tocou em sua mão. 

- Sim. Venha comigo. 


A medida que iam correndo a expectativa crescia. Desciam rumo a uma das construções semelhantes a em que Daniel acordara. Passaram rápido pela entrada, Lígia cumprimentou pessoas que conhecia. Eles já estavam esperando. Daniel não falou com ninguém mas todos lhe sorriam. 
Um outra ressuscitação estava para ocorrer, e Daniel e sua companheira estavam em lágrimas. 

- Eu... Eu não posso acreditar. 

- Você... Sabe há quanto tempo eu esperei por isto? Quase 10 anos. Fui ressuscitada há quase 10 anos Daniel, e durante todo esse tempo esperei por esse dia. 

Todos os nosso parentes e amigos desistiram. Mas eu não, eu não podia ter esse momento sem você. Você merece isso... Meu amor. 

Sons estranhos ecoaram no ambiente, e logo se ouviu um choro de criança. Uma mulher trouxe a criança, de pouco menos de um ano. 

- ...Hugo... 

A emoção era forte demais, pai e mãe abraçaram o bebê, que logo sorria. 

- ...Meu Huguinho... Meu filhinho. 

- Deus... Agora tudo vai ficar bem. Somos uma família de novo. 


- Lígia, minha amada... Estamos juntos de novo. Nós Três. 

- Para sempre meu amor... 


Para Sempre.