sexta-feira, 16 de novembro de 2012

*Letícia e Eu*


Fui amigo de uma garota chamada Letícia, nós éramos os melhores amigos na escola. Tinha um professor -de química-, todos nós adorávamos ele. Ele tinha um jeito de falar que encantava a todos, era a aula mais calma que tínhamos. Letícia era que um tanto apaixonada pelo professor Humberto, conversávamos muito sobre isso, riamos muito dessa coisa clichê "aluna-que-é-apaixonada-pelo-professor-que-nem-sabe-que-ela-existe", mas o professor Beto (era assim que ela gostava que o chamássemos  não era assim, ele conseguia dar uma atenção especial pra cada um de nós, os 30 alunos daquela turma bagunceira que dividia seu tempo entre idas à coordenação pedagógica, as aulas, a cantina e o pátio no intervalo, um dia o professor Beto disse à Letícia que precisava conversar com ela depois da aula. Letícia era a menina mais bonita e inteligente da turma, mas não percebeu... E nós ficamos zoando a menina dizendo que o Professor Beto ia se declarar pra ela...


Depois da aula, o professor drogou-a e a levou de carro pra um bairro distante, num terreno baldio, e estuprou Letícia violentamente. Com medo que ela contasse para alguém, ele a torturou por mais de duas horas, a estrangulou até a morte e a esquartejou, por fim enterrou os pedaços do corpo em sete buracos diferentes. O espírito de Letícia agora vaga por aquele terreno, assombrando os casais que por ventura se atrevam a entrar lá à noite. Agora que você leu a história de Letícia, te peço gentilmente para ajudar o espírito de Letícia a descansar em paz. Cace todos os estupradores do mundo, vigie-os, denuncie-os. Se você não fizer isso, Letícia irá te visitar, e fazer-lhe sentir a dor de ser torturado... Parece coisa de corrente, né  Mas deixa eu continuar...
No começo, nós não acreditávamos nisso, mas aí as coisas estranhas começaram: Luisa riu da história e disse que a culpa de Letícia ter sido estuprada era da própria Letícia, que se insinuava pro professor. No dia 18 de fevereiro seu corpo foi encontrado em pedaços no quintal da casa da namorada. O mesmo aconteceu com Amanda, encontrada estrupada e morta em casa, no próprio quarto, com portas e janelas trancadas por dentro. Nestes anos após a morte de Letícia, muita coisa estranha começou a acontecer na cidade. Muita gente morrendo de forma bizarra, e sempre tinha alguma ligação com o terreno, ou com Letícia.
Semana passada fui ao terreno baldio -nada conseguia ser construído ali, tentaram-se várias vezes, mas sempre ocorriam estranhos acidentes. Há um ano a prefeitura mandou mura-lo todo, mas no muro sempre aparecia um misterioso buraco, grande o suficiente para uma pessoa passar, até o dia que a prefeitura apenas colocou uma placa dizendo "Perigo. Afaste-se!".

Era uma noite de lua cheia e céu limpo, eu levava embaixo do braço um tabuleiro oui-ja que comprei num antiquário no centro, na biblioteca eu emprestara um livro sobre magia e o li até saber cada página de cor. Na outra mão uma sacola com outras coisas e meu caderno de anotações, onde eu anotara cada passo e palavra do Rito de Chamada.
Eu pretendia falar com Letícia, pedir que ela parasse com aquilo.


Entrei no terreno e senti um frio intenso cobrir todo o meu corpo 'ela está mesmo aqui' pensei. Fui até o meio do terreno -onde o jornal (que eu guardara desde o evento) dizia ter sido encontrada sua cabeça, com os olhos vazados, a língua cortada, ouvidos perfurados. A cena foi tão pavorosa que nenhum jornal da cidade publicou uma foto sequer.
Fiz de acordo com o manual: cavei uma pequena vala em círculo, derramei sal por toda ela, desenhei os símbolos com um galho verde virgem -recém tirado de uma roseira-brava que a família de Letícia mandara plantas daquele terreno em homenagem a filha -a única planta que viçava por ali. Nem um mato sequer crescia ali.
Coloquei a tábua oui-ja no centro do círculo, acendi os sete incensos, as quatro velas, comecei a recitar a evocação 

'Ego invocant te, spiritus sufferens, ad manifestandam vestra praesentia in loco isto iacet anima inlaqueaverunt'. 

Não sei como explicar, mas quando terminei a evocação, foi como se o silêncio da noite ficasse ainda mais profundo, quase sólido.
Alguns instantes depois, ouço vindo por de trás de mim uma voz rascada, como a voz pastosa de alguém que acabara de acordar dum sono pesado, profundo. 
"Estou aqui Ary. Eu sei porque me chamou. Eles tem que pagar."
Não me atrevi olhar pra trás, tinha medo de olhar o espírito da minha amiga. Continuei olhando a tábua oui-ja e meio que senti/ouvi um tipo farfalhar leve e percebi que ela estava à minha frente, do lado de fora do círculo protetor 'graças à Deus, isso funciona!' pensava nervoso enquanto suspirava... Finalmente falei 
"Lili, o Beto já foi preso. Pegou mais de 70 anos sem condicional. Ele provavelmente vai morrer na cadeia. Então..." o sangue pareceu gelar nas minhas veias quando ouvi aquela voz mofada, triste, dizer 
"Ele JÁ morreu, Ary. Porque você não me olha? Levanta o rosto!". Eu silenciosamente recitei 

'Creator universi dominum, mala res fragiles tueri. Quid mihi obest, non quod vultus ejus.'

 e ergui o olhar e então vi: era minha amiga, exatamente como eu me lembrava dela na última vez que a vi... Antes de tudo... Antes ''dele''. 
"Lili... Se foi você que pegou o pro... o Beto, porque ainda está por aqui?? Quer dizer, sei-lá! Se você já resolveu seu negócio pendente você não deveria ter atravessado, visto a luz o ou que quer que aconteça com os fantasmas quando eles quebram seus grilhões? Você está livre! Vá!" eu disse olhando dentro daquele olhos cor-de-amêndoa que eu tantas vezes vi rir e chorar e uma dorzinha aguda atravessou meu peito, me fazendo abaixar a cabeça levemente. O que vi me gelou o espírito e quase fechei meus olhos pra não continuar vendo aquilo: sobre a tábua oui-ja estava um triângulo de prata sólida polida, que eu deveria tocar com os dedos a cada recitação. Nele eu pude ver o reflexo de Letícia, mas o reflexo... Não era ela ali! Não como eu lembrava dela. Naquela imagem refletida eu via uma criatura com marcas de cortes profundos, onde vermes transitavam livremente entrando e saindo, via um maxilar quebrado, frouxamente pendurado pelos músculos rompidos, via buracos fundos donde escorria um líquido escuro e denso como óleo de motor, ali onde deveriam estar seus olhos. Segurando a vontade de gritar e fechar o olhos, ou virar a cabeça, respirei profunda e lentamente, me concentrei e recitei outro texto

 'Divinum angelicae potestates, invoco vos ad benigna lux entia, benignitatem, fortitudo et amoris, mihi tribuat, miserum me mortalis, omnia tua tutela contra impium dictitans malum, quod hoc mundo turbato qui subsannat vita quae data est a nascitur creatoris ipsius magistri vos mihi tantum et vagatur iam olim in vita moratus est. Custodi me!'. 

Tendo terminado a invocação, abri um sorriso que logo murchou em meus lábios ao ouvir a voz gutural, subterrânea, de Letícia dizer "Não posso partir Ary. O verme do Beto é apenas um entre vários outro monstros! E não é ele, nem minha vingança que me mantém aqui Ary. É o amor. O amor que aqui me agrilhoa.".

Muito lentamente, ainda com a cabeça baixa, comecei a desenhar os selos em minha palma-de-mão, com a primeira pena caída de uma ave de rapina. Argui: 
"Amor Lili?! Por amor você matou tanta gente que nunca te fez coisa alguma? Por amor você persegue a outros casais??". Nem bem terminei de falar e Letícia responde: 
"Sim. O amor que você sente por mim.". Foi ai que vento começou a soprar, apagando as velas e buscando desfazer o círculo de proteção e isso tudo reforçado pela voz de Letícia 
"E eu quero o meu beijo.". 

'Abhorret turbatus spiritu! Striga! Importantis strapae Amxalak vos et tenere profectum vestrum, protegens salutem meam, dans mihi transitum tutum ex hic.'. 

Vi uma luminescência rubra envolver totalmente Letícia, e no mesmo momento o vento parou, o frio cedeu um pouco. Juntei tudo que havia levado e corri pra fora daquele terreno.
"Eu te amei, Lili, mas você morreu. A vida continua. Você deve seguir adiante, em frente!" foi o que eu disse quando estava do outro lado do muro. Alguns dias depois em ocorrido, comecei a sentir calafrios pelo corpo quando estava sozinho, como se mãos congeladas me agarrassem.
Ante ontem tive um sonho onde Letícia aparecia me dizendo 
"Você não deveria ter me abandonado, Ary. Mas eu sei como resolver isto..." acordei entre tremores e suores frios. Por isso escrevo este relato. Sinto que hoje será meu último dia entre os vivos, e quis partilhar a história de Letícia e a minha. Se não tiverem mais notícias minhas, aos que me conhecem, me procurem em casa, atrás das portas trancadas...

José de Arymatéia da Silva